18 de outubro de 2012

Ser Liberal, liberalismo, e coisas que tais

O Filipe perguntou-me ontem o que entendo por ser liberal:


Vou tentar dizer o que penso e o que sinto do liberalismo, sem recorrer nem ao Google nem ao Wikipedia!

Na teoria:

Recorrendo à história, tivemos na década de 20 do Século XIX uma guerra em Portugal entre Absolutistas e Liberais. O que os liberais defendiam era que o povo deveria ser mais bem representado nos órgãos de soberania, e que as pessoas pertencentes às classes sociais não ficassem presas a elas, ou seja, “horizontalizar” tanto quanto possível os estratos sociais e acabar com tanta desigualdade no acesso às oportunidades.

Como instrumentos dessa afirmação do povo, adotou-se a carta constitucional, que teve vários avanços e recuos, o parlamentarismo com câmara e senado, a eleição de deputados por sufrágio e a nomeação de um governo com poderes executivos, escrutinado pelo parlamento e supervisionado na aprovação das leis pela figura do Rei.


Na prática:

Quem mais poderes perdeu foi o próprio rei, que de um absolutismo passou para uma figura quase simbólica na vida política nacional, jurando apenas defender a Carta constitucional e a soberania portuguesa. Mas como as coisas não corriam bem nesta nova fase da vida política nacional, frequentemente o rei tinha que aceitar pedidos de demissão do governo por não haver condições para governar, e convocar governos de salvação. Houve vários golpes de Estado, como o do Duque de Saldanha em 1850, e fora isso, os governos sucediam-se ora do partido regenerador, ora do partido liberal, tendo sido nesta altura cunhado o termo “rotativismo”. Enfim, o rei passou a mandar sobretudo na aceitação de demissões e na nomeação de novos executivos.

O sufrágio era limitado, e só alguns é que podiam votar. Criaram-se as condições para que aparecessem os caciques, os que tentavam “controlar” o eleitorado nas círculos eleitorais mais pequenos, criando toda uma cadeia de favores e obediências partidárias, ficando famosa a prática de oferecer o “carneiro com batatas” nas campanhas eleitorais.

Ser liberal hoje, para mim, na conceção política do termo, é estarmos de acordo com o sistema parlamentar representativo, o sufrágio universal, a separação de poderes, a independência do sistema judicial e o respeito pela Constituição

E na conceção económica do termo, é estarmos de acordo de que o acesso a qualquer cargo, lugar ou profissão não está vedado só porque se pertence a este ou aquele extrato social. Se eu quiser ser médico, engenheiro, empresário, jardineiro ou o que for, tenho a liberdade de o ser, desde que cumpra com as regras que o Estado e a sociedade ditam.

Poder-se-á argumentar que quem não tem dinheiro não poderá ter acesso às mesmas oportunidades dos que têm dinheiro. É verdade, mas o fator limitativo é o dinheiro, e não uma barreira artificial criada por uns só porque não querem que outros ascendam ao seu nível.


Se me perguntas se sou um liberal ou não é algo que não consigo responder. Mas a conceção, tanto política como económica, agrada-me bastante, com todos os defeitos que tenha.

E se me perguntas se é este sistema liberal, tendencialmente centralizador/representativo o mais indicado para a cultura portuguesa?

Também me é difícil responder, mas estou inclinado a dizer que não, apenas e só porque a nossa história diz-nos que com este sistema, as lutas entre classes políticas é permanente, e as necessidades, deveres e liberdades daqueles que os elegeram são frequentemente esquecidas. Isto aconteceu com a monarquia constitucional, com a I República Democrática, durante a Ditadura mas de forma muito mais contida e agora, em todo o seu esplendor, com esta nossa democracia que vigora desde o 25 de Abril de 1974.


Parece que o sistema político liberal vigente, e que está quase a fazer 200 anos, não conseguiu anular ou sequer reduzir a enorme concentração de poder que vinha do Absolutismo e que gravita atualmente entre o Terreiro do Paço, São Bento e Belém. É que para estes terem tanto poder, outros não têm nenhum, e portanto são as regiões, as comunidades e as aldeias que ficaram esvaziadas dele.


Talvez tenha sido desde o século XV que esta concentração de poderes em Lisboa se reforçou com a chegada do Absolutismo e de outras correntes políticas europeias, como o Renascimento, esvaziando paulatinamente a soberania local e os governos locais. Na minha opinião, é a soberania local que talvez se aproxime mais da maneira de ser do português, tendencialmente reivindicativo e desejoso de ter uma face à frente com quem poder falar, desabafar e ouvir o outro lado. Frequentemente ouvimos dizer que os políticos estão lá em Lisboa e que cá, em Freixo de Espada-à-Cinta, ninguém nos liga nenhuma.
As freguesias e as câmaras do país dependem, todas elas, quer financeiramente quer politicamente, do poder centralizador lisboeta. É de lá que emanam toda a espécie de decisões:
. concorre este ou aquele à Câmara x ou y
. é este que recebe mais ou menos do que aquele,
. sobe no partido fulano A em vez de fulano B.

E também não acredito que seja a tecnologia, a internet, e a facilidade de nos deslocarmos que altere esta nossa perceção de que os governantes estão lá longe a decidir no gabinete e que para eles nós não passamos de números.

Demorei mais a responder porque tinha que pensar um bocadinho sobre isto. No mínimo, tu merecias esse esforço da minha parte e o resto da malta que lê o Contas também.

Tiago Mestre

8 comentários:

Anónimo disse...

Tiago,

Diria então que és adepto da regionalização?

Abraço,
Bruno Morais

Tiago Mestre disse...

Bruno, para concordar, precisaria de saber em que moldes o projeto da regionalização nos seria apresentado.

Há uma premissa de base que me parece essencial:
Por cada euro de despesa que se criasse na regionalização e na soberania local, pelo menos um euro de despesa teria que ser reduzido na administração central.

O modo, os instrumentos e os mecanismos subjacentes ao processo de transferência de poder de Lisboa para todo o país teria que ser analisado nos seus múltiplos detalhes.

Mas sou muito ignorante nesta história da regionalização em Portugal.

Fernando Ferreira disse...

Deixo aqui um artigo, traduzido por mim, que fala sobre a democracia e o liberalismo. Podera ser interessante para os leitores.
Cumprimentos!

http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1345

Filipe Silva disse...



Fernando bullseye artigo magistral.

Existe a teoria e depois a prática.

Não existe a separação de poderes em Portugal.
Basta ver caso freeport, só para dar um exemplo.

Como não existe mobilidade na sociedade, a % de pobres nos ultimos 20 anos é mais ou menos a mesma,
A desigualdade é brutal, apesar de existir um estado redistribuidor muito forte.

Já tinha matutado sobre o assunto da democracia, o artigo explicita de forma excelente (muito melhor que eu conseguiria, nesse capitulo sou como o Hayek), o que já pensava.

É um sistema colectivista, e na forma de ver de Hayek, um sistema socialista.

A Democracia assenta na coerção, a dita tirania da maioria.

Liberal actualmente tem muitos significados, até chamam ao governo ultra-neoliberal.

Se memória não me falha, já afirmas te ser adepto das ideias do movimento libertário. Estou errado?

Quando começamos a discutir o que é melhor para a cultura nacional entramos no campo da engenharia social, algo que é errado.

Quando nascemos existem instituições que existem desde sempre e não foi com a democracia, ou outro qualquer sistema que se desenvolveram.

A lingua é uma destas instituições, já viste que o Estado mexeu na língua, e não tem aceitação por parte da maioria da população, a língua pertence as pessoas, não ao Estado.

A democracia não serve, como também não serve a ditadura.

O Estado actual não é mais que uma forma de manter a oligarquia sem problemas, tem de se comprar alguns politicos, para se continuar a enganar as pessoas.

Medina Carreira já afirmou, que se vão analisar o que tinham alguns politicos antes de entrar na politica e o que tem hoje.

Sempre que alguem acha que é que sabe, esta criado a receita para o desastre.

Tenho aprendido que quando alguem aparece a dizer defender os mais pobres, a primeira coisa que me vêm à mente é, como é que este vai lixar o pessoal?

Os QE são sempre descritos como uma forma de salvar e ajudar os que mais precisam, mas a realidade é que ajuda é os que mais tem

Das duas uma ou se é pela liberdade, e não se pode aceitar violência e coerção, ou senão o é

Tiago Mestre disse...

Fernando, vou ler

vazelios disse...

Fernando grande artigo, obrigado

Luís disse...

Continuando a acreditar que podemos mudar o sistema sem passar por
uma ditadura, deixo um link para um artigo que um amigo meu me
enviou esta semana, está em francês não tenho conhecimentos que
permitam a sua tradução.
http://www.slate.fr/story/62981/suisse-meilleure-democratie-europe
Luis M.

Fernando Ferreira disse...

Filipe, concordo contigo, a democracia nao serve, como nao serve qualquer forma de colectivismo, i.e., a ideia de que existem coisas na vida que temos de "decidir em conjunto" e o que quer que a maioria (dos votantes)ache certo e justo e', necessariamente, certo e justo. Aqueles que votarem de modo diferente da maioria tem de obedecer a coisa que recebeu um maior numero de votos, sem pestanejar. Por isso nao compreendo como pode-se pensar que democracia e liberdade sao a mesma coisa ou, pelo menos, andam de mao dada. Basta olhar para inumeros exemplos do passado para compreender que, na maioria das vezes (senao mesmo todas as vezes), a maioria esta errada. Isto e' simples de compreender ja que os estatistas colectivistas vendem a ideia de que votamos para o "bem comum", quando na realidade nao existe tal coisas. As pessoas acabam por votar nas plataformas politicas que mais benesses prometem oferecer-lhes, independentemente de quem acabar por pagar por elas. Os medicos e os enfermeiros votam por quem quer por mais euros no SNS, os professores votam por quem promete mais vagas na educacao (caso do Hollande, em Franca), os banqueiros por quem promete mais QE, os industriais por mais "estimulos", os agricultores por mais subsidios, a populaca em geral por mais "apoios sociais" e promessas de taxar os "ricos".
Tudo isto acontece apenas porque o colectivismo esta enraizado na cabeca das pessoas. Ninguem consegue imaginar a coisa de outra maneira.
Confia-se no mercado livre para nos fornecer tantos bens essenciais (comida, roupa, automoveis, computadores, mobiliarios, etc., etc.) e, ao mesmo tempo, nao se acredita que o mercado livre tem a capacidade de fornecer servicos de saude, educacao, seguranca e justica. Prefere-se confiar que o estado e' o unico que pode "fornecer" esses servicos monopolisticamente porque sao servicos muito "caros", sem se compreender que e' exactamente porque o estado esta envolvido neles que os servicos sao caros e ineficientes.
So' quando as pessoas comecarem a perceber que o colectivismo e' inimigo da liberdade e so com liberdade e' que poderemos ter uma sociedade justa e prospera, e' que as coisas poderao mudar para melhor. Enquanto isso nao acontecer, tudo so ira para pior.
Cumprimentos!